top of page
Buscar
  • ciadapta2

"Essas crises são um chamamento por mudanças transformadoras em todas as dimensões"



“Diante das várias crises simultâneas que estamos enfrentando, um espaço como este é fundamental para promover uma reflexão coletiva: como a informação científica que produzimos poderá ser mobilizada para impulsionar mudanças concretas e urgentes?”, provocou a pesquisadora Gabriela Di Giulio (FSP-USP) no último dia 6 de julho, ao abrir sua participação no webinar “Mudanças Climáticas Globais: seus impactos e estratégias de mitigação e adaptação”.


Promovido pela Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o evento foi o segundo da série de sete webinars “A Ciência no Desenvolvimento Nacional”. A série reúne pesquisadores para uma análise crítica do estado da arte da ciência no Brasil e, evidentemente, para abordar alguns dos desafios inerentes à crise climática que, em meio a uma complexa conjuntura global, ameaça o Brasil de forma especialmente contundente. Participaram também do encontro – coordenado pelo professor Paulo Artaxo (Aciesp) – David Montenegro Lapola (Cepagri-Unicamp), que também integra o CiAdapta2; Mercedes Maria da Cunha Bustamante (ICB-UnB); e Pedro Leite da Silva Dias (IAG-USP).


O conjunto de temas analisados ao longo dos webinars será reunido no livro Fapesp 60 Anos: A ciência no desenvolvimento nacional. O episódio da semana passada discutiu o segundo capítulo do livro, que contou também com a participação dos dois pesquisadores centrais do CiAdapta2.


Em sua fala, Gabriela Di Giulio tocou nos diversos tópicos inerentes aos seus estudos – em grandes linhas, centrados nas dimensões humanas das mudanças climáticas e na interface entre a ciência e a comunicação –, ressaltando o quanto as diversas crises que o mundo enfrenta se entrelaçam e intensificam contextos de vulnerabilidade como o brasileiro. “Particularmente no Brasil, há sempre a equação perversa que soma – e não raro multiplica – os efeitos das carências de infraestrutura, do acesso desigual a serviços básicos e assistência, da supressão de infraestrutura verde e azul, das condições de vulnerabilidade e das enormes iniquidades sociais”, afirmou a pesquisadora, reiterando o quanto esta “série de desafios” é agravada pelas mudanças aceleradas do clima.


“Todas essas crises são um chamamento muito forte por mudanças transformadoras em todas as dimensões – por uma urgente reversão desse paradigma que amplifica vulnerabilidades, reproduz iniquidades, redefine ameaças sociais e, em última instância, evidencia a nossa incapacidade de reverter esse modelo predatório de espoliação da natureza e postular outro baseado na solidariedade e no respeito à diversidade biológica.”


Neste contexto, o papel da ciência é inequívoco. “Podemos reafirmar, com muita segurança, a fundamental importância de investimentos contínuos em ciência e tecnologia para que possamos ter mais clareza sobre os efeitos desse modelo vigente; compreender as causas e os impactos dessas crises simultâneas; e, em particular, encontrar soluções e reais transformações que priorizem a justiça social e ambiental”, reiterou a pesquisadora.



Leia abaixo a participação integral de Gabriela Di Giulio no evento “Mudanças Climáticas Globais: seus impactos e estratégias de mitigação e adaptação”:


"Começo a minha fala observando que, neste momento, estamos relembrando importantes marcos da agenda ambiental global: são 50 anos da realização da primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente; 35 anos da publicação do relatório Nosso Futuro Comum, que de certa forma institucionalizou a perspectiva de desenvolvimento sustentável; e 30 anos da realização da conferência da ECO 92, que estabeleceu a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Ao mesmo tempo, há enormes desafios colocados tanto pela crise climática – objeto da nossa discussão de hoje –, quanto por outras crises como a perda de biodiversidade, a insegurança alimentar e a emergência de saúde pública global em torno da covid-19.


E não há dúvida de que todas essas crises são um chamamento muito forte por mudanças transformadoras em todas as dimensões – por uma urgente reversão desse paradigma que comprovadamente amplifica vulnerabilidades, reproduz iniquidades, redefine ameaças sociais e, em última instância, evidencia a nossa incapacidade de reverter esse modelo predatório de espoliação da natureza e postular outro baseado na solidariedade e no respeito à diversidade biológica.


Por outro lado, neste momento em que celebramos os 60 anos da Fapesp, podemos reafirmar, com muita segurança, a fundamental importância dos investimentos contínuos em ciência e tecnologia – para que a gente não possa apenas ter mais clareza sobre os efeitos desse modelo vigente, mas, sobretudo, para compreendermos as causas e os impactos dessas crises simultâneas – e, em particular, como encontrar possíveis saídas, soluções e reais transformações que priorizem questões de justiça social e justiça ambiental.


Particularmente no Brasil, pensamos sempre naquela equação perversa que soma – e não raro multiplica – os efeitos das dinâmicas de planejamento, das carências de infraestrutura, do acesso desigual a serviços básicos e assistência, da supressão de infraestrutura verde e azul, das condições de vulnerabilidade, das enormes iniquidades sociais… há aí uma série de desafios que são bastante agravados pelas mudanças aceleradas do clima.


Entre esses desafios – e acho que nesse capítulo conseguimos abarcar alguns deles – estão o direito à água e ao saneamento básico, tendo em vista as recorrentes crises hídricas que assolam diferentes territórios do país. (De novo, nessa combinação perversa de inadequações na governança da água, dos efeitos negativos associados ao desmatamento, das mudanças do uso do solo e dos impactos dos extremos climáticos.)

Mas eu lembro que, no Brasil, segundo dados do Instituto Trata Brasil e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2020, temos ainda quase 35 milhões de brasileiras e brasileiros que ainda não têm acesso à água tratada – e quase 100 milhões de brasileiros sem acesso à coleta de esgoto.


Tem outro desafio também: o acesso à energia, particularmente a uma energia limpa e barata, considerando a necessária diversificação da matriz energética, da transição para uma economia de baixo carbono, mas também considerando as enormes desigualdades socioeconômicas que caracterizam o nosso país.


Outro desafio que me parece muito crucial – também colocado no nosso capítulo – é a urgente garantia de segurança alimentar, sobretudo neste momento em que o Brasil volta, com muita força, a estar presente no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas. O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia de COVID 19 – lançado agora em junho de 2022 e produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – revela situações bastante preocupantes. Em termos populacionais, de acordo com o relatório, são mais de 125 milhões de pessoas residentes em domicílios com insegurança alimentar – e mais de 33 milhões de brasileiras e brasileiros em situação de fome.


Sabemos muito bem que os pilares da segurança alimentar e nutricional – isto é, o acesso a alimentos e à utilização, disponibilidade e estabilidade no abastecimento – são diretamente afetados pelas mudanças do clima.


Então vou colocar algumas questões para pensarmos sobre governança, questões urbanas, cidades e adaptação – e para pensarmos, juntos, alguns impactos também das mudanças climáticas na saúde.


Começo por essa ideia de governança, adaptação e cidades, num panorama bastante rápido e super sintético: a agenda em torno da questão climática no Brasil tem um pouco mais de 20 anos. Ela começa a ser construída em 1999 e é ampliada, no início de 2000, com a criação do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. Depois, em 2009, vem a Política Nacional sobre Mudança do Clima, que oficializa o compromisso voluntário do Brasil junto à Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima, numa perspectiva de reduzir emissões de gases de efeito estufa.


Em 2015, no âmbito do Acordo de Paris firmado ao final da COP 21, na França, o Brasil propôs suas metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. No ano seguinte, em 2016, veio o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, com a perspectiva de orientar iniciativas sobre gestão e diminuição do risco climático no longo prazo, considerando os efeitos adversos das mudanças do clima em diferentes dimensões – social, econômica e ambiental.


Então, embora a existência desse arcabouço regulatório possa sinalizar que o Brasil está alinhado à agenda sobre mudanças do clima, precisamos reconhecer que o abandono das políticas de controle de desmatamento; o apoio político às práticas agrícolas predatórias; o desmantelamento de importantes políticas ambientais; e os reveses em relação às metas climáticas têm colocado em risco o comprometimento efetivo no Brasil no combate à crise climática.


De outro lado, de forma bastante acelerada, os episódios recorrentes relacionados aos eventos climáticos – como os registrados todos os anos, mas em particular, na nossa memória, os que foram registrados este ano em diferentes cidades brasileiras – mostram também, com muita força, que essas alterações em termos de distribuição, intensidade e frequência dos riscos relacionados às condições meteorológicas não só ameaçam as capacidades de as cidades brasileiras absorverem perdas e se recuperarem dos impactos, mas, sobretudo, como esses impactos exacerbam os riscos que já existem nas cidades brasileiras, agravando as condições de vulnerabilidade, particularmente de grupos sociais e comunidades que já estão em situações bastante precárias, bastante vulneráveis.


Nesse sentido, ainda que os acordos internacionais tenham um importante peso no enfrentamento das mudanças do clima – e que os governos nacionais tenham um papel bastante estratégico nessa agenda –, não temos dúvidas de que o desafio da mudança climática passa por ações em diferentes escalas, em diferentes níveis de governo, e requer um forte comprometimento da sociedade nas suas diferentes formas de organização.


Quero destacar sobretudo o papel central que os governos subnacionais – e em particular os governos locais – têm na governança climática e na adaptação às mudanças do clima. O próprio Acordo de Paris de 2015; a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, particularmente com o ODS 11 (mais focado nas cidades) e o ODS 13 (mais focado nas questões climáticas); e a nova agenda urbana da ONU Habitat sinalizam desafios e oportunidades em diferentes níveis, para que as cidades como um todo estimulem iniciativas criativas, inovadoras, reconhecendo o papel bastante estratégico que os governos locais têm nesses processos de transição, tanto para a sustentabilidade, quanto no planejamento efetivo de adaptação.


Quando trazemos essa dimensão ao contexto brasileiro, podemos pensar que o papel dos governos centrais é ainda maior: estamos falando de um país onde mais de 80% da população vive em ambientes urbanos. É óbvio que podemos pensar que estamos falando também de diferentes cidades, com diferentes características, inclusive em termos populacionais – desde uma megacidade como São Paulo, com mais de 12 milhões de habitantes, até pequenas cidades.


Mas as cidades são foco de uma atenção bastante particular quando o tema é mudança climática, porque elas concentram as áreas mais suscetíveis a enfrentarem os impactos mais severos das alterações climáticas – desde a elevação do nível do mar, particularmente nas cidades costeiras, claro, mas também aos eventos extremos de precipitação e temperatura.


Ainda no caso brasileiro, quando pensamos no crescimento rápido dos assentamentos urbanos – e do processo de urbanização desordenada que em geral, caracteriza a maioria das cidades brasileiras –, esses são elementos bastante importantes para analisarmos os impactos dos extremos climáticos.


Ainda que apresentem as suas especificidades, em comum os municípios brasileiros tendem a ser marcados por uma legislação urbanística ainda muito descolada das dinâmicas urbanas e da produção do espaço urbano. Ainda são muito marcados pela desarticulação de políticas setoriais – como aquelas relacionadas à preservação ambiental e à habitação –, o que dificulta muito essa qualificação mais integrada do espaço urbano, tornando o processo de adaptação bastante complexo e muitas vezes arrastado. Essa segregação sócio-espacial – que também é outra característica marcante das cidades brasileiras, sobretudo nos grandes centros urbanos – agrava ainda mais esse cenário.


Somado a esses problemas, a redução de áreas verdes, a expansão histórica das áreas urbanizadas e o negligenciamento das infraestruturas verde e azul que modulam o clima urbano tendem a agravar os episódios recorrentes de inundações, de alagamentos severos, de ondas de calor, de baixa qualidade do ar, trazendo uma série de impactos à qualidade de vida e bem estar dos indivíduos.


Aqui, retomo um estudo que publicamos em 2019 – e que não está no nosso capítulo – para ilustrar como podemos pensar essa questão da governança climática no nível local. A gente se debruçou sobre um conjunto de dimensões que afetam a capacidade dos governos locais de avançar na agenda climática. As cinco dimensões que estudamos e aplicamos em seis grandes cidades brasileiras [São Paulo, Manaus, Natal, Vitória, Curitiba e Porto Alegre] são os fatores cognitivos, como percepção de risco sobre nível de urgência, que podem motivar processos adaptativos nas cidades; recursos, incluindo recursos humanos e econômicos que provêm apoio econômico e técnico-administrativo para avançar na agenda adaptativa; fatores organizacionais, ou seja, se os municípios participam de redes, se têm arcabouços regulatórios relacionados à questão climática; e práticas administrativas, que podem facilitar ou não a capacidade de implementar recursos e promover a integração da adaptação como tema central do planejamento do desenvolvimento dos setores.


Uma outra dimensão que analisamos foi o relacionado a aspectos políticos, ou seja, se há vontade política e qual o nível de comprometimento que pode facilitar ou dificultar a implementação das iniciativas climáticas; e as próprias dinâmicas locais de planejamento urbano, que afetam particularmente a capacidade das cidades de consolidar as intervenções de adaptação.


E então, quando aplicamos esta estrutura analítica a essas seis grandes cidades, identificamos importantes elementos críticos que estão presentes nas dimensões que citei e que afetam bastante a governança climática no Brasil.


Entre eles estão bem claros os seguintes fatores: as desconexões entre as políticas setoriais; uma falta de clareza, de definição de responsabilidades, de prioridades entre diferentes setores; uma perspectiva burocrática que ainda caracteriza muitos procedimentos formais na gestão pública; um sistema de planejamento político institucional que ainda é bastante ineficaz; os próprios conflitos, disputas, tensões entre as diferentes jurisdições; o patrimonialismo, que ainda controla muitos órgãos e contratos públicos; uma perspectiva utilitarista da política, que é bastante influenciada por tendências e interesses político-partidários, que muitas vezes são hostis inclusive às questões ambientais; a existência de grupos de pressão que constantemente fazem lobbies por mudanças, beneficiando determinados setores em detrimento dos interesses públicos; e uma fiscalização insuficiente em relação aos regulamentos e marcos vigentes.


Um outro elemento que apareceu no nosso estudo – e que eu acho que é bastante relevante para a gente pensar aqui – é a necessidade de nós, pesquisadores, produzirmos dados que de fato ajudem a enquadrar a adaptação climática ao desenvolvimento sustentável, ao combate à pobreza, à proteção ambiental, a projetos de infraestrutura básica que podem reduzir vulnerabilidades e melhorar o bem estar dos indivíduos e ecossistemas.


Então, aqui eu acho que há um chamamento importante para a gente pensar como é que a gente pode, de fato, avançar nessa questão de produção de dados que conversem mais diretamente com a realidade prática dos municípios, com a necessidade que os municípios têm de agir.


E, como eu disse, um segundo elemento que eu gostaria de trazer aqui é quanto às relações entre mudanças climáticas e saúde.


Aqui eu retomo rapidamente um relatório produzido pelo Human Rights Council, em 2019, que já destacava que as mudanças climáticas – compreendidas como uma emergência sem precedentes – e a falha dos estados em protegerem as suas populações, particularmente as mais vulneráveis, ameaçavam o futuro dos direitos humanos, ampliando os abismos que já existem entre países, comunidades e grupos sociais e destacando o chamado apartheid climático.


Recentemente, um relatório sobre saúde e mudanças climáticas da Organização Mundial da Saúde também deixou muito claro que as mudanças climáticas são uma das emergências de saúde mais urgentes que enfrentamos. Não há dúvida de que os impactos das mudanças climáticas na saúde estão diretamente relacionados às condições dos determinantes sociais da saúde – incluindo a própria cobertura de saúde universal, a garantia de direitos humanos, de segurança alimentar e hídrica, de habitação digna, de governança socioambiental, de políticas públicas e – como discutimos no nosso capítulo – também dos rumos do modelo de desenvolvimento do país.


Se, de um lado, estudos (e aqui eu destaco o papel da Fiocruz) têm mostrado que as mudanças ambientais globais têm consequências muito diretas no avanço de patógenos que geram impactos tanto para a saúde pública, mas também para a conservação da fauna (e aí a gente pode pensar na pandemia de covid-19, na emergência do coronavírus, do SARS-CoV-2), de outro, esse modelo hegemônico vigente, que é bastante dependente de combustíveis fósseis; as práticas agrícolas convencionais; e o desmatamento, por exemplo, têm significativos efeitos para a saúde pública, como o agravamento das doenças respiratórias (principalmente para as crianças, para idosos, aqueles com enfermidades), o que aumenta o risco de hospitalização e de mortalidade por essas doenças.


Eu gostaria de chamar a atenção também para o entrelaçamento entre pandemias.


Retomo aqui um relatório divulgado pela comissão The Lancet sobre sindemia global – nessa perspectiva de um neologismo que combina sinergia e pandemia –, sinalizando, nesse relatório, como a interação entre as pandemias de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas constituem a sindemia global que caracteriza esse século 21. E olha só: a gente nem tinha ciência de que iríamos ter a pandemia de covid-19; esse relatório foi divulgado em 2019.


O relatório mostra que essas pandemias têm, na verdade, elementos muito comuns:, compartilham impulsionadores sociais em comum; têm sinergias em relação às ações políticas necessárias para o seu enfrentamento; compartilham os mesmos elementos impulsionadores – em particular desenho urbano, sistemas de uso do solo e sistemas alimentares.






23 visualizações0 comentário

Commentaires


bottom of page